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UMA EXPOSIÇÃO VISUAL INÉDITA

RETRATOS DE UM TEMPO é uma reconstrução visual da Bahia antiga, onde o artista Floro Freire se utilizou de pintura digital para recriar paisagens que se perderam com o passar dos séculos.

Emanuek Bowenin. Salvador Bahia. Aproximadamente década de 40 do século XVIII - in Navigantium atque itinerantium bibliotheca. Or, a Complete Collection of Voyages and Travels”. Londres: T. Woodward, A. Ward, et al., 1744-1748, de John Harris.

De um modo geral, as cidades do Velho Mundo foram uma criação do campo e do tempo. Formaram-se pelo ajuntamento gradual de pessoas num determinado sitio, quase sempre em volta de um mercado. No Novo Mundo, ao contrário, as cidades nasceram de uma decisão real, em função de um plano colonizador. A Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos, primeira capital do Brasil, é exemplo disso. Uma cidade que nasceu não como produto de um passado, mas como projeto de um futuro.

Nas colônias americanas de língua espanhola, as cidades foram planejadas de acordo com o novo modelo urbanístico do Renascimento – o traçado geométrico, abstrato, em tabuleiro de xadrez. No Brasil, não. Os portugueses transplantaram, para as nossas latitudes tropicais, a localização e o desenho da cidade medieval lusitana. Salvador foi pensada e construída como uma cidade lusa no ultramar. Uma cidade que aceita os caprichos do relevo. Que se estende sinuosamente à beira-mar, a cavaleiro do Atlântico, com as suas igrejas e sobrados distribuindo-se por dois andares: a Cidade Alta e a Cidade Baixa, também chamada Bairro da Praia ou Comércio, pelo fato de ali se terem concentrado as nossas atividades mercantis.

Durante séculos, a Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos e a sua interlândia mais imediata, o chamado Recôncavo Baiano, foram inseparáveis. De certa forma, assim como assimilaram técnicas indígenas de construção náutica, o que os portugueses fizeram nesta região da Bahia de Todos os Santos, foi superpor a sua própria rede econômica e comunicacional a uma malha indígena preexistente, que conectava aldeia de Kirymure, do Paraguaçu, do Iguape. A cidade e seu Recôncavo cresceram, assim, de forma solidária. Como realidades coesas, organicamente interligadas. Eram muitos os caminhos de água que partiam do Recôncavo para se encontrar com as ondas mansas do grande golfo baiano. 

O projeto Retratos de um Tempo nasceu com propósito bem definido e campo claramente delimitado. O horizonte maior estava, naturalmente, numa reflexão sobre as grandes possibilidades abertas pelos recursos da informática à antropologia e à história. O que pretendíamos, de modo mais modesto e imediato, era digitalizar um rico acervo de fotos oitocentistas da Cidade da Bahia – fotos de Mulock, Vedani, Gaensly, Ferrez, Schieier e Lindemann – e submetê-lo a uma leitura computadorizada. Novas tecnologias possibilitando um uso histórico-memorial, que permitem a ampliação, a penetração em detalhes e, pela justaposição, a produção de panoramas inéditos, “neofotos” de Salvador. Com este material, poderíamos produzir livros, dvds, etc., focalizando aspectos múltiplos da história e da vida na Cidade da Bahia.

O próprio objetivo de levar a história às pessoas, especialmente à juventude, através de técnicas e produtos de seu cotidiano virtual, nos conduziu a exploração de outros caminhos. De uma parte, ao alargamento histórico, chegando aos primeiros dias de existência da cidade, sobre os quais a base documental não é visual, mas escrita. De outra, a abertura temática, capaz de viabilizar uma compreensão mais clara de aspectos centrais da vida baiana.

Saveiros, barcos e canoas vinham carregados, deslizando a flor do mar com as suas mercadorias coloridas. Trazendo açúcar, tabaco e cachaça de Santo Amaro da Purificação. A produção das olarias de Jaguaribe. Os rolos de fumo de Cachoeira, a farinha e os mariscos de Maragogipe, frutas e gêneros alimentícios de toda parte, tudo se negociava no cais, nos ancoradouros baianos, na beira da praia. A gente baiana pouco se afastava, na verdade, da orla do mar. Não por acaso Gilberto Freyre definiu Salvador como uma cidade talássica, com as suas casas recobertas pela cal dos mariscos, com óleo de baleia na argamassa. Não por acaso, Wanderley Pinho, em sua História Social de Salvador, fala da formação da alma marítima do cidadão da Bahia e seu Recôncavo.

Além de prédios isolados, pontuando com destaque o espaço citadino, surgiram também, ao longo do século 18, alguns conjuntos urbanos. São os produtos do urbanismo barroco da Bahia. Grupos de prédios residenciais e comerciais construídos de acordo com um projeto comum. Como se via no Cais da Farinha e no Cais das Amarras, ambos no bairro da Praia. Era um conjunto de quadras, formadas por edifícios que tinham o mesmo número de andares e o mesmo acabamento externo, fazendo com que o observador tivesse a impressão de estar vendo um único prédio em cada quadra. E cada conjunto aparecia como uma obra que se impunha no espaço urbano, como uma espécie de quebra-mar de ordem e elegância. Daí que Nestor Goulart Reis Filho, em suas Notas sobre o urbanismo barroco na Bahia, contrapunha sua existência à ideia de que o urbanismo lusitano fora totalmente marcado por um desapreço a regra e a regularidade. Ao contemplar os conjuntos do urbanismo barroco da Bahia, o estudioso vai sublinhar justamente a sua diferença com relação aos arruamentos mais desordenados. E vai ver surgindo, junto ao mar, as linhas imponentes dos grandes sobrados, como uma barreira de racionalidade formal.

Outro prédio que se impunha, por seu caráter monumental, era o do Mercado do Ouro, construído na Segunda metade do século 19. Obra de cantaria e ferro – destinada, entre outras coisas, a mercado, celeiro e açougue – ergueu-se o prédio a rua do Cais Dourado, em área conquistada ao mar.

Com esta aura mitológica, chegou a ser referência dos romances de Jorge Amado, signo dos desenhos de Carybé e tema do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, com a Unidos de Vila Isabel cantando seus mestres e bambas.

Em texto publicado pelo Almanaque da Bahia, em 1881, lemos a seguinte descrição:

As frentes do edifício do lado da rua e do mar contém cada uma dois elegantes sobrados ostentando um frontispício ou fachada com grandes pórticos de ferro para entrada. Tem aí vastos armazéns, salões e cômodos para negócios. No centro do edifício existe uma pequena praça com quatro elegantes pavilhões sobre colunas de ferro, destinados a acomodar 120 quitandeiras de verduras e frutas. No centro dela, está colocado um chafariz de mármore. Nos fins de semana, o Mercado se via cercado por uma feira. E a feira era uma festa. Uma festa popular, festa de largo, como então se dizia. O Mercado tinha, a sua frente, o Cais do Ouro ou Cais Dourado. Instalava-se ali a festa popular baiana. Já nas noites de sábado, as quitandeiras armavam as suas barracas coloridas. Seus tabuleiros de frutas, de produtos da cozinha baiana, de bebidas. Abriam-se, então, as rodas de palma e pandeiro. As rodas do samba do Recôncavo e da capoeira da Bahia. Capoeiragem baiana praticada por mestres que ficaram famosos, gravados na memória da cidade, como Samuel Querido de Deus – corpos atléticos e elásticos estendendo-se no espaço, ao som do berimbau. Com isso, a região do Mercado do Ouro e seu Cais Dourado assumiu uma dimensão única, convertendo-se em mito e meca da cultura popular do povo negro e mestiço da Bahia.

Na entrada do século 19, Salvador era cidade imponente. Senhorial. No alto, o burgo caminhava do atual Campo Grande para o Convento da Soledade, com praças espaçosas como a da Piedade e a do Terreiro de Jesus. O Bairro da Praia, por sua vez, estendia-se tortuosamente da Preguiça a Jiquitaia – e daí se tomava o rumo da Península Itapagipana. Construções religiosas e militares dominavam a paisagem. As celebres igrejas barrocas da Cidade da Bahia e as suas fortalezas, como o Forte de Santo Antônio, na Ponta do Padrão, onde hoje se vê o Farol da Barra e o Forte de São Marcelo ou Forte do Mar, parecendo flutuar nas águas da baia.

Farol e Forte de Santo Antônio da Barra, Bem Mulock – 1860

Nesta época, começaram a ser feitos os primeiros retratos em branco e preto. As primeiras fotografias de Salvador. Dava então o ar de sua graça, para lentes e negativos, a velha e venerável cidade de todos os santos. Eram fotos de Mulock (ano), Vedani (ano), Gaensly (ano),  Ferrez (ano), Schleier (ano), Lindemann (ano) e Gonçalves (ano). Fotógrafos ao mesmo tempo realistas e estéticos, retratando, para o futuro, o presente da metrópole senhorial dos sobrados, a Bahia do terno branco e dos saveiros, das saias rendadas, das gamelas e malaguetas, das colinas coroadas de conventos.

O nosso projeto nasce exatamente daí, do trabalho desses fotógrafos. Trata-se de uma leitura tecnológica, high-tech, computadorizada do maravilhoso trabalho desses primeiros fotógrafos-pintores, retratistas da Cidade da Bahia. O que nós estamos fazendo é dar vida – em base documental, histórica e antropológica – a estes retratos da Bahia. Com os recursos da informática – ampliando, justapondo, escaneando – conseguimos dar cor, textura, densidade e realidade ao que, nestas fotos, às vezes não são mais do que traços quase irreconhecíveis, manchas, elementos desfocados. Conseguimos ainda, com a justaposição precisa de alguns documentos visuais, criar novas visões da cidade, panoramas inéditos, que o avanço tecnológico tornou possíveis. A história é sempre um exercício de reconstrução, de re-imaginação do passado. Mas é diferente do romance, no sentido de que, ao contrário da fantasia romanesca, está assentado em sólidas bases documentais.

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